sábado, 5 de setembro de 2015

O Navio Negreiro - Tragédia no mar (Trecho)

O Poeta Castro Alves dedicou grande parte de sua obra á luta pelo fim da escravidão. Um de seus poemas mais famosos se chama "O navio negreiro". Nesse longo poema, ele descreve os horrores da viagem marítima que trazia os escravos da África para o Brasil e interpela Deus, num discurso revoltado, exigindo justiça. Veja uma Parte dele:

O Navio Negreiro - Tragédia no mar (Trecho)

 Senhor Deus dos desgraçados!
 Dizei-me vós, Senhor Deus!
 Se e loucura... se é verdade
 Tanto horror perante os céus...
 Ó mar! por que não apagas
 Coa esponja de tuas vagas
 De teu manto este borrão?...
 Astros! noite!! tempestades!
 Rolai das imensidades!
 Varrei os mares, tufão!

 Quem são estes desgraçados,
 Que não encontraram em vós,
 Mais que o rir calmo da turba
 Que excita a fúria do algoz?...
 Quem são? Se a estrela se cala,
 Se a vaga á pressa resvala,
 Com um cúmplice fugaz,
 Perante a noite confusa...
 Dize-o tu, severa musa!
 Musa libérrima, audaz!

Sã os filhos do deserto
Onde a terra esposa a luz,
Onde voa em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados,
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão...
Homens simples, fortes, bravos...
Hoje míseros escravos
Sem luz, sem ar, sem razão...

São mulheres desgraçadas...
Como Agar o foi também,
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm.
Trazendo com tíbios passos
Filhos e algemas nos braços
N'alma - lágrimas e fel.
Como Agar sofrendo tanto
Que nem o leite do pranto
Têm que dar para Ismael...

Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram - crianças lindas,
Viveram - moças gentis...
Passa um dia a carana
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus...
...Adeus! ó choça do monte!...
Adeus! palmeiras da fonte!...
Adeus! amores... adeus!...

Depois o areal extenso...
Depois o oceano de pó...
Depois... no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que cede
E cai pra não mais s'erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.

Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido á toa
Sob a tenda da amplidão...
Hoje o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...

Ontem plena liberdade!...
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade!
Nem são livres pra... morrer!...
Prende-os a mesma corrente
- Férrea, lúgubre serpente -
Nas moscas da escravidão...
E assim roubados á morte
Dança á lúgubre coorte,
Ao som do açoute... Irrisão!...

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus!
Ó mar! por que não apagas
Coa esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?...
Astros! noite! tempestade!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!
Castro Alves 

Glossário:


açoute: chicote
Agar: personagem bíblica que era uma escrava egípcia
algoz: carrasco
alquebradas: exaustas
arranco: agonia
audaz: ousada, audaciosa, corajosa
cadeia: corrente, fileira
choça: cabana
coa: forma abreviada de "com a"
coorte: tropa
infinda: sem fim, infinita
Ismael: personagem bíblico, filho de Agar
lúgubre: fúnebre, sinistra
mosqueados: pintados, malhados
o rir: o riso
resvala: desliza, escorrega
tíbios: fracos
tufão: furacão, ventania, temporal
turba: multidão em desordem
vagas: ondas

Até o próximo poste :*

Nenhum comentário:

Postar um comentário

A Transformação de Raven - Livro

Boa noite pessoal ^-^ Saudades de escrever no blog *o* Assim como a Trilogia de Gabriel teve uma postagem, essa Trilogia também terá. Do...