quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Capitulo II - Solfieri

Sabei-o. Roma é a cidade do fanatismo e da perdição: na alcova do sacerdote dorme a gosto a amásia, no leito da vendida se pendura o crucifixo lívido. È um requintar de gozo blasfemo, que mescla o sacrilégio á convulsão do amor, o beijo lascivo á embriaguez da crença!
Era em Roma. [...] A noite ia bela. Eu passeava a sós pela ponte de... As luzes se apagaram uma por uma nos palácios, as ruas se faziam ermas, e a lua de sonolenta se escondia no leito de nuvens. Uma sombra de mulher apareceu numa janela solitária e escura. Era uma forma branca. A face daquela mulher era como de uma estátua pálida á lua. Pelas faces dela, como gotas de uma taça caída, rolavram fios de lágrimas.
Eu me encostei á aresta de um palácio. A visão desapareceu no escuro da janela... e daí um canto se derramava. Não era só uma voz melodiosa: havia naquele cantar um como choro de frenesi, um como gemer de insania: aquela voz era sombria como a do vento á noite nos cemitérios, cantando a nênia das flores murchas da morte.
Depois o canto calou-se. A mulher apareceu na porta. Parecia espreitar se havia alguém nas ruas. Não viu ninguém:saiu. Eu segui-a.
Andamos longo tempo pelo labirinto das ruas, enfim, ela parou: estávamos num campo.
Aqui, ali, além eram cruzes que se erguiam de entre o ervaçal. Ela ajoelhou-se. Parecia soluçar: em torno dela passavam as aves da noite.
Não sei se adormeci: sei apenas que quando amanheceu achei-me a sós no cemitério. Contudo a criatura pálida nao fora uma ilusão: as urzes, as cicutas do campo-santo estavam quebradas junto a uma cruz.
O frio da noite, aquele sono dormido á chuva, causaram-me uma febre. No meu delírio passava e repassava aquela brancura de mulher, gemia aqueles soluços, e todo aquele devaneio se perdia num canto suavíssimo...
Um ano depois voltei a Roma. Nos beijos das mulheres nada me saciava; no sono da saciedade me vinha aquela visão...
Uma noite, e após uma orgia, eu deixara dormida no leito dela e a condessa Barbosa. Dei um último olhar áquela forma nua e adormecida com a febre nas faces e a lascívia nos lábios úmidos, gemendo ainda nos sonhos como na agonia voluptuosa doa mor. Saí. Não sei se a noite era límpida ou negra; sei apenas que a cabeça me escaldava de embriaguez. As taças tinham ficado vazias na mesa: aos lábios daquela criatura eu bebera até a última gota do vinho do deleite...
Quando dei acordo de mim estava num lugar escuro: as estrelas passavam seus raios brancos entre as vidarças de um templo. As luzes de quatro círios batiam num caixão entreaberto. Abri-o: era o de uma moça. Aquele branco da mortalha, as grinaldas da morte na fronte dela, naquela tez lívida e embraçada, o vidrento dos olhos mal apertados... Era uma defunta!... e aqueles traços todos me lembraram uma idéia perdida... Era o anjo do cemitério! Cerrei as portas da igreja, que, ignoro por que, eu achara abertas. Tomei o cadáver nos meus braços para fora do caixão. Pesava como chumbo... [...] Tomei-a no colo. Preguei-lhe mil beijos nos lábios. Ela era bela assim: rasguei-lhe o sudário, despi-lhe o véu e a capela como o noivo os despe á noiva. [...] O gozo foi fervoroso - cevei em perdição aquela vigília. A madrugada passava já frouxa nas janelas. Àquele calor de meu peito, á febre de meus lábios, á convulsão de me amor, a donzela pálida parecia reanimar-se. Súbito abriu is olhos empanados [...] Não era já a morte; era um desmaio [...]
Nunca ouvistes falar de catalepsia: È um pesadelo horrível aquele que gira ao acordado que emparedam num sepulcro; sonho gelado em que se sentem os membros tolhidos, e as faces banhadas de lágrimas alheias, sem poder revelar a vida!
A moça revivia a pouco e pouco. Ao acordar desmaiara. Embucei-me na capa e tomei-a nos braços coberta com seu sudário como uma criança. Ao aproximar-me da porta topei um corpo, abaixei-me, olhei: era algum coveiro do cemitério da igreja que aó dormia de ébrio, esquecido de fechar a porta...
Caminhei. Estava cansado. Custava a carregar o meu fardo; e eu sentia que a moça ia despertar. Temeroso de que ouvissem-na gritar e acudissem, corri com mais esforço...
Quando eu passei a porta ela acordou. O primeiro som que lhe saiu da boca foi um grito de medo...
Dois dias e duas noites levou ela de febre assim... Não houve sanar-lhe aquele delírio, nem o rir do frenesi. Morreu depois de duas noites e dois dias de delírio.
À noite saí; fui ter com um estatuário que trabalhava parfeitamente em cera, e paguei-lhe um estátua dessa virgem. Quando o escultor saiu, levantei os tijolos de mármore de meu quarto, e com as mãos cavei aí um túmulo. Tomei-a então pela última vez nos braços, apertei-a a meu peito muda e fria, beijei-a e cobri-a adormecida do sono eterno com o lençol de seu leito. Fechei-a no seu túmulo e estendi meu leito sobre ele.
Um ano - noite a noite - dormi sobre as lajes que a cobriam... Um dia o estatuário me trouxe a sua obra. Paguei-lha e paguei o segredo...
- Não te lembras, Bertram, de uma forma branca de mulher que entrevistes pelo véu do meu cortinado? Não te lembras que eu te respondi que era um virgem que dormia?
- E quem era essa mulher, Solfieri?
- Quem era? Seu nome?
- Quem se importa com uma palavra quando sente que o vinho queima assaz os lábios? quem pergunta o nome da prostituta com quem dormiu e sentiu morrer a seus beijos, quando nem há dele mister por escrever-lho na lousa?
Solfieri encheu uma taça e bebeu-a. la erguer-se da mesa quando um dos convidados tomou-o pelo braço.
- Solfieri, não é um conto isso tudo?
- Pelo inferno que não! Por meu pai que era conde e bandido, por minha mãe que era a bela Messalina das ruas, pela perdição que não! Desde que eu próprio calquei aquela mulher com meus pés na sua cova de terra, eu vo-lo juro! - guardei-lhe um amuleto a capela de defunta. Ei-la!
Abriu a camisa, e viram-lhe ao pescoço uma grinalda de flores mirradas.
- Vede-a? Murcha e seca como o crânio dela!

(Àlvares de Azevedo. Noites na taverna)

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